Aforismo 78

postado em: Adorno, ipsis litteris, Pesquisa | 0

Acima das montanhas. – De um modo mais perfeito do que qualquer outro conto, Branca de Neve exprime a melancolia. Sua imagem pura é a rainha, que olha a neve pela janela e deseja uma filha com a beleza viva, mas inanimada dos flocos, com a negra tristeza da moldura da janela, com a pungência do sangue que escorre; e que morre no momento do parto. Nada disso é cancelado pelo final feliz. Assim como o consentimento de seu desejo significa a morte, a salvação permanece uma ilusão. Pois a observação mais profunda não deixa acreditar que aquela que parece adormecida no ataúde de vidro tenha sido despertada. O pedaço da maçã envenenada, que o abalo da viagem faz desprender-se da sua garganta, não seria, muito mais do que um meio para o assassinato, o resto da vida não aproveitada, banida, da qual só agora ela se cura, quando não há mais mensageiras enganadoras para seduzi-la? E como soa alquebrada esta felicidade: “E então Branca de Neve enamorou-se dele e com ele partiu”. Como nada disso é revogado pelo ruim triunfo sobre a ruindade! Assim, quando esperamos salvação, uma voz nos diz que a esperança é vã e, no entanto, é ela apenas, a impotente esperança, que nos permite cobrar alento. Nenhuma contemplação é capaz de outra coisa senão redesenhar pacientemente em figuras e esboços sempre novos a ambigüidade da melancolia. A verdade é inseparável desta quimera: que das figuras da aparência surja, no entanto, um dia, sem aparência, a salvação.

 

ADORNO, Theodor W. Aforismo 78. In: ______. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Ática, 1992. p. 106.

...

Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969), músico e pensador alemão, é um dos principais nomes da chamada Escola de Frankfurt. Com proposições que perpassam a filosofia, a sociologia, a psicologia e a música, Adorno possui uma vasta e complexa obra que compõe uma importante parte do acervo da teoria social crítica. O aforismo que aqui apresentamos faz parte do livro Minima Moralia, escrito durante os anos 1940, com aforismos que percorrem temas diversos sem perderem de vista, com a seriedade característica de Adorno, as deformações sociais e culturais que permeiam nossa existência.