[Apresentação de “Estórias abensonhadas”]
Estas estórias foram escritas depois da guerra. Por incontáveis anos as armas tinham vertido luto no chão de Moçambique. Estes textos me surgiram entre as margens da mágoa e da esperança. Depois da guerra, pensava eu, restavam apenas cinzas, destroços sem íntimo. Tudo pesando, definitivo e sem reparo.
Hoje sei que não é verdade. Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocultou no mais inacessível de nós, lá onde a violência não podia golpear, lá onde a barbárie não tinha acesso. Em todo este tempo, a terra guardou, inteiras, as suas vozes. Quando se lhes impôs o silêncio elas mudaram de mundo. No escuro permaneceram lunares.
Estas estórias falam desse território onde nos vamos refazendo e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta.
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COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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António Emílio Leite Couto – Mia Couto – nasceu em Beira (Moçambique), em 05 de julho de 1955. Jornalista, biólogo e escritor, é considerado um dos maiores escritores moçambicanos, e é também o mais traduzido. Já recebeu diversas premiações, possui vários livros publicados e sua obra é extensa, incluindo contos, crônicas, poesias e romances. Uma de suas belas produções literárias é a obra “Estórias abensonhadas”, que reúne contos narrados de maneira singela, sensível e poética, revelando as facetas de vidas que vão das cruezas ao fantástico.