Marina Colasanti - O Conto do Verde Vale

No Colo do Verde Vale

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Marina Colasanti, jornalista ítalo-brasileira nascida em 1937, é autora de mais de 30 livros de contos, poesia, prosa, literatura infantil e infanto-juvenil. No livro “Doze Reis e a moça no labirinto do vento” Marina retoma a antiga tradição dos contos de fada em treze belíssimas histórias que transcendem as fronteiras do mundo mágico e nos falam das delicadezas e espinhos da vida cotidiana.

 

No Colo do Verde Vale

Cansado. Assim sentia-se o Tempo.

– Muito mais que velho, muito além de antigo. Isto eu sou – pensava andando para a frente, ele que não conhecia outra direção.

Vasculhando o passado que trazia às costas, não encontrava o dia em que tinha começado a caminhar. Já procurara muito. Agora até duvidava que existisse esse dia, que ele, como tudo o mais, tivesse um começo. Há tanto andava, que não sabia quanto, e bem podia há outro tanto estar andando.

Lá longe, porém, na juventude – se é que alguma vez tinha sido jovem – lembrava-se de caminhar com alegria, os passos, ou a alma, leves. Ah! sim, tinha sido bom. Naquela época, certo de que o mundo inteiro era arrastado por ele, como numa imensa rede, enchia-se de orgulho e de poder.

– Eu piso com o pé direito – dizia afundando bem o calcanhar – e trago a primavera. Piso com o pé esquerdo – lá ia outro pé marcando a terra – e vem chegando o verão. Cada passada minha faz uma flor, um fruto, uma semente.

Ria vendo girar as pás do moinho de vento.

– Coisinha de nada – dizia-lhe – se o vento acabar, você morre. Eu não, eu sou meu próprio vento. Sou eu que comando a ordem de tudo, que faço a hora do sol, e marco a noite da lua. Eu que empurro este mundo todo para a frente.

Essa tido sido sua razão para andar. Mas agora, tantas luas acumuladas no seu rastro, tantas frutas desfeitas no chão, já não lhes via graça. Pois nada havia à sua frente que não conhecesse.

Só uma coisa não conhecia. Parar.

Foi pensar na palavra, e estremecer de susto. Nunca antes essa idéia tinha estado com ele. Pela primeira vez desde a alegria, percebeu que tropeçara em algo novo.

Parar, seria possível?

– Mas se eu parar – pensou – os filhos não se acabam no ventre das mães, os passarinhos nos ninhos não aprendem a voar.

E continuou andando.

Mas a idéia seguiu caminho com ele, mais tentadora a cada passo. E o Tempo começou a olhar o mundo com outros olhos, procurando em todo lugar a sedução que o faria cometer tão grande audácia.

Olhou a cachoeira. Imaginou-se ali, os pés metidos na água fria, ouvindo para sempre o canto transparente.

– Mas se eu parar, pára a água, – pensou num susto – a canção emudece. Não terei mais o que ouvir, nem onde molhar os pés. E triste, tocou as pernas para a frente, uma depois da outra, como sempre.

Olhou a floresta. Pensou o bom que seria deitar naquele musgo rasgado de sol. E já se via quase lagarto, quando lembrou que as árvores parariam de crescer, as folhas parariam de mexer, o sol pararia de brilhar. E levantando os joelhos com cansaço e tédio, foi adiante.

Chegou ao deserto. – Enfim, um lindo mundo parado! – exclamou. Mas da crista das dunas o vento soprou areia em seus olhos, e ele percebeu que nem ali poderia ficar. E foi ao mar, e viu as ondas. E passou pelo lago, e viu os peixes. Tudo se movia. Tudo, pensou, estava preso à rede que trazia nas costas.

Até chegar ao vale. Liso, lindo, lento vale.

Águas se perseguiam entre lago e regatos, espigas balançavam a cabeça jogando grãos ao vento, flores se voltavam para o sol. Ali também, no mesmo movimento, nada estava parado.

– Pois eu estarei! – exclamou súbito o Tempo, reconhecendo naquela paz todo o seu desejo.

E aos poucos, suspiroso, temendo a própria coragem, espraiou-se no vale. E pela primeira vez, descansou.

Céu acima, doce grama embaixo, ainda esperava porém o desastre, o enorme desabar da ordem. E alisava o pêlo  daquele chão, finas hastes e talos, para levá-lo na memória das mãos quando fosse preciso levantar-se e recomeçar a marchar para sempre, em castigo por aquele momento de fraqueza.

Silêncio no vale.

– Acabou-se – pensou, esmagado de culpa – tudo parou. A luz do sol pareceu escurecer.

– É o fim – e entrefechou os olhos.

Mas chegou um mugido de longe, estremeceu um coelho no mato, uma folha caiu. Para surpresa do Tempo, movia-se o mundo.

– Não sou eu, então, que carrego isso tudo? – perguntou-se intrigado, sentando. E debruçado para olhar de perto o mundo pequeno que nunca tivera tempo para olhar, viu o grilo saltar vergando fios de grama, viu o escaravelho marcar sua passagem rolando a bola de esterco, a serpente escorrer em curvas, cada um no seu ritmo, avançando, tecendo a rede de que ele acreditava segurar as pontas. E ali, inclinado sobre a vida, descobriu aquilo que nunca suspeitara. Não era ele com seus passos que ordenava tudo, que comandava o salto do grilo, o vento na espiga, as pás do moinho. Mas eram eles, grilo e espiga, cada um deles que, com seus pequenos movimentos, faziam os passos do Tempo.

Então abriu as mãos, soltou a carga que acreditava carregar, deitou a cabeça.

Serena, a nuvem se afasta. O sol volta a desenhar as sombras.

No colo do verde vale, dorme afinal o Tempo, enquanto filhotes amadurecem nos ovos.

 

COLASANTI, Marina. No colo do verde vale. In: ______. Doze reis e a moça no labirinto do vento. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982. p. 32-37.